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Projectos Oitocentistas de Ortografia Brasileira

 
Maria Filomena Gonçalves
(Universidade de Évora, Portugal)

1. A questão ortográfica no século XIX

Como é sabido, a língua portuguesa só conheceu uma ortografia oficial no século XX, embora nas épocas precedentes existissem sistemas gráficos mais ou menos usuais ou generalizados. Até 1911, data em que se oficializa, por iniciativa do governo da República portuguesa, proclamada em 1910, um sistema unificado e simplificado, assente nos estudos realizados, desde o século anterior, por Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, muita tinta foi vertida em matéria ortográfica tanto em Portugal como no Brasil, onde a Academia Brasileira, fundada em 1897, também vinha discutindo a questão e até chegara a propor uma Reforma Ortográfica em 1907. Efectivamente, as tentativas de acercamento das duas Academias, nesta matéria, já vinham desde o ano seguinte ao da fundação da agremiação brasileira, mas sem efeitos práticos.

Unilateralmente feita em Portugal, a reforma encontra todavia os seus antecedentes nas décadas de 70 e de 80 de oitocentos, período em que nos dois países, por razões diversas, o problema da fixação e simplificação dos sistemas gráficos circulantes conheceu um relevante epicentro. Vamos, pois, centrar a nossa atenção nos projectos oitocentistas em que autores brasileiros, à luz de factores externos, quer dizer, de factos histórico-políticos e culturais, e de factores internos, ou seja, dados linguísticos, defendem e legitimam sistemas gráficos distintos dos modelos já existentes ou propostos em Portugal, antiga potência colonial cuja Academia não conseguiu ter o poder congregador da sua congénere espanhola.

Antes, porém, é conveniente referir os antecedentes que permitem compreender como em Portugal a tendência fonográfica foi formalizada e, por consequência, lançada a discussão da sua validade. A questão ortográfica sofrera um forte abalo com a publicação, em 1875, da Memória em que o cirurgião de brigada José Barbosa Leão propunha um sistema de base sónica, baseado na realização fonética do vocalismo e do consonantismo do português. A partir dessa data, como reacção àquele texto e aos princípios e soluções ortográficas nele expendidos, ficam assentes as bases da discussão entre os sónicos, encabeçados por Barbosa Leão, e os chamados etimológicos, seus detractores, entre eles os próprios académicos, em particular Pinheiro Chagas, que refuta as ideias da chamada Comissão Portuense e do seu mentor, Barbosa Leão. A discussão gira em torno daquilo que a escrita deve representar, por um lado, e, por outro, da identificação e descrição prévias da variedade padrão do português e, portanto, das soluções mais adequadas à transcrição desse português padronizado. Com efeito, para os sónicos, prevalecia o primado da oralidade, entendida aqui como realização fonética ou fonetizante, motivo por que admitiam a criação de unidades gráficas novas, rompendo com a continuidade da tradição alfabética, como propuseram, em 1879, João Félix Pereira,1 Barreto Corte-Real2 e Castanheira Neves;3 para os etimológicos, a escrita, e portanto a ortografia, devia representar o vínculo de parentesco com a matriz greco-latina, elo nobilitador e garantia da relação entre a sincronia presente e a sua construção diacrónica. Prescindindo de uma apresentação das soluções incluídas em cada uma das propostas portuguesas, vale a pena dizer, contudo, que estas eram conhecidas do lado de lá do Atlântico. Se em Portugal o quadro das correntes ortográficas em presença, entre as décadas de 70 e de 80, era favorecido por condições sociais, culturais e políticas, como o debate público das causas do endémico atraso económico, industrial e social do país, a fraca escolarização da população e a taxa de analfabetismo, a ascensão do republicanismo e a instabilidade política, já no Brasil a questão ortográfica está associada à independência recente e à assunção de uma identidade nacional, alicerçada na autonomia linguística e cultural. De facto, as propostas brasileiras oitocentistas traduzem, embora em graus variáveis, o desejo e a intenção de favorecerem a autonomia linguística do Brasil, face ao português europeu, por meio de uma ortografia brasileira tradutora das diferenças fonéticas, sintácticas e lexicais entre as duas normas.

1.1. A corrente "fonográfica" na América Latina

Importa dizer que o movimento reformista que em Portugal e no Brasil ganhou particular intensidade, atendendo ao número de propostas sobre o assunto, na década de setenta, vinha alastrando igualmente em outros países da América do Sul, sobretudo no Chile, o caso mais significativo de nacionalismo ortográfico. Com efeito, a ideia da reforma ortográfica, parece ter sido impulsionada na América Latina por circunstâncias de índole linguística, ao mesmo tempo que era favorecida por factores sociais e políticos.4 No Chile, os impulsionadores da reforma simplicadora da ortografia castelhana foram Andrés Bello e Juan García del Río, os quais, logo em 1823, publicaram em Londres umas Indicaciones obre la conveniencia de simplificar y uniformar la ortografía en América; de volta ao Chile, Bello vai ser o Reitor da Universidade Chilena e proporá o chamado sistema chileno, baseado na pronúncia do espanhol, sem atentar nas peculiaridades dialectais da América. Em 1844, da Argentina, seu país natal, chega ao Chile Domingo Faustino Sarmiento,5 cuja intervenção na questão ortográfica ficará na história das ideias ortográficas respeitantes ao castelhano, visto ter lançado uma proposta radical e revolucionária que originou uma intensa polémica. Na mesma altura, no México vêm a lume alguns artigos de teor coincidente com as propostas do argentino. Na sequência da proposta de Sarmiento, uma comissão universitária chilena resolveu adoptar parcialmente algumas das soluções daquele reformador. Esse sistema chileno incluía as seguintes soluções gerais: representação de /Z/ por < j> e de i por < i> , supressão de < h> em todos os contextos, adopção de < rr> para representar a vibrante forte em todas as posições, a oclusiva surda /k/ passa a ser sempre transcrita por < q> , sem suporte mudo junto de < e, i> ; a sua correspondente sonora /g/ também é apenas grafada por < g> . É curioso que algumas destas soluções coincidem com as do sónico português Barreto Corte-Real. Todavia, a reforma chilena fracassou e, depois dela, surgem os chamados "neógrafos", encabeçados por Rodolfo Lenz, que pugnam por uma reforma mais radical, ao arrepio da Academia Espanhola (Contreras, 1994: 50-51). Não obstante a intervenção desta, houve tanto em Espanha como na América Latina, em especial no Chile, diversas tentativas de reforma radical, em certa medida equivalentes às que assinalámos para o português: disso são exemplo os adeptos da "fonografia" e os "neógrafos".6 Acrescente-se, ainda, que o movimento reformista alastrou em diversos países, como a Espanha, onde também surgiram propostas de carácter muito radical, herdeiras do espírito da tradição quintiliana, como se vê pelo título da Ortografía berdadera de la lengua española, o sean reglas fijas i senzillas para eskribir el español segun aztualmente se abla (Balladolid,1881), de Juan de Becerril, e nos Estudios de fonetika kastellana (1894), de Fernando Araujo; em Inglaterra, a corrente foi representada por Bullokar, Alex Gill e Charles Buttler.7 Também o sistema italiano foi objecto de reformas como a de Riforma Ortografica de Gelmetti (Milão, 1886). Esses projectos reformistas estrangeiros eram conhecidos em Portugal, sendo que a proposta de ortografia chilena era conhecida do próprio Gonçalves Viana, que a ela se refere na "Adverténcia Preliminar" (p. IX) ao seu vocabulário Ortográfico e Ortoépico da Língua Portuguesa (1909).

O problema da simplificação e da nacionalização ortográfica estava, pois, na ordem do dia e relacionava-se, claramente, com a procura de emancipação cultural das nações recentes com respeito às antigas potências colonizadoras. São estas as ideias subjacentes às propostas brasileiras do Padre Siqueira, de Paranhos da Silva e de Miguel Lemos, de 1877, 1879-1880 e 1880, respectivamente. Embora de maneiras diferentes, todas elas se integram na chamada "questão da língua brasileira".

2. Propostas oitocentistas de ortografia brasileira

2.1. Estudo sobre a Ortografia da Lingua Luzo-Brazileira (1877)

Da autoria do Padre Francisco Antunes de Siqueira,8 este estudo vem a lume dois anos após a publicação, em Portugal, da Memória de Barbosa Leão, e cinquenta e cinco anos depois da independência do Brasil. Apesar da denominação de cunho nacionalista, dos princípios expendidos, das soluções gráficas expostas, e das frequentes expressões "no Brazil", "na lingua brazilica", "alfabeto luso-brazilico", a proposta de Siqueira pauta-se pela moderação, sem atingir, portanto, os contornos de uma verdadeira reforma sónica, nem pôr em causa a tradição alfabética. Baseando-se nas particularidades fonéticas da "língua luzo-brazileira", o autor propõe um sistema simplificado em que a componente etimológica se vê bastante reduzida. Assim sendo, esta Ortografia Luzo-Brazileira integra-se no chamado "movimento da ortografia brasileira" - mais pelo título e pelos princípios do que pelas soluções apresentadas - , impulsionado por um nacionalismo linguístico ulterior à independência e fundado nos traços distintivos da fonética brasileira relativamente à portuguesa. Ao amparo do princípio da adequação entre os registos oral e escrito, esse movimento constitui uma espécie de "grito do Ipiranga ortográfico":

A ortografia tambem tem seguido os caprixos da moda, e poriso tem mudao muitas vezes: o que nos importa o que os latinos ecrevêrão ? Não é mais sensato o escrevermos como falamos, como fazem outras nações, que não tirão do latim menos do que nós ? Se cada nação tem sua linguagem e sua ortografia, porque não temos nós a nosa ? (...) E porque havemos nós, os brazileiros, estar sujeitos ao aranzel babilonico, sendo livres nas mais leis, e costumes ? O costume dos formadôres da nosa lingua adotando as palavras latinas, e de outras nações, foi sempre encurtando-as, suprimindo silabas, mydando vogaes, e consoantes para lhes dar o som proprio da nosa linguagem e voz: e he barbarismo o escrevêrmos o que não pronunciamos.

A etimologia para falarmos e escrevermos a nosa linguagem he o som brazileiro, com que nos entendemos: e os sons adotados em nosa lingua (venhão d’onde vierem) he que devemos tirar as duvidas. A unica objeção plausivel a este sistema he que perdendo-se a filiação das palavras, em poucos annos a linguagem se corrompe inauditamente; mas um dicionario, que mostre com os competentes acentos da pronuncia a significação das palavras, será mais util para evitar esa correcção, do que o valiôzo estravagante exame das ruinas de Babel, com que se uafana inconstantemente Constancio. Estudemos a nosa lingua, que havemos de acha-la melhor do que latina (pp. 4-6).

Porém, ao nível das soluções aplicadas à representação tanto do vocalismo como do consonantismo, o sistema descrito fica aquém do que seria de esperar da bandeira doutrinal do ortografista brasileiro. Duas das soluções mais interessantes são, por exemplo, a supressão das chamadas consoantes mudas ("atual", "aspeto") e a redução dos grupos consonânticos não articulados ("nacer"). Todavia, em nome do "uzo geral" mantém o < h> inicial e em interior de palavra ("ahi", "bahia"), com função diacrítica. Ao invés do grafema anterior, < y> é proscrito do sistema, inclusive nas grafias de palavras de origem indígena ("tupi"). Na verdade, a "ortografia luzo-brazileira" não é mais do que uma versão fraca de fonetização, visto contentar-se com reduzir a componente etimológica (grafias duplas, dígrafos e grupos consonânticos), em diminuir pontualmente a heterografia, para além de tentar sistematizar a representação vocálica.

Os princípios subjacentes a este sistema têm o seu corolário nas seguintes conclusões: grafar unicamente o que é requerido pela pronúncia; adaptar à língua portuguesa mesmo as palavras retiradas do latim ou de outras línguas; em suma, respeitar a "simplicidade natural e desafetada da nosa lingua" como único critério ortográfico.

2.2. Sistema de Ortografia Brazileira (1879-1880)

O Sistema de Ortografia Brazileira foi proposto pelo brasileiro José Jorge Paranhos da Silva (1859-?) que em alguns dos seus trabalhos ortográficos (O idioma do hodierno Portugal comparado com o do Brazil, 1ª e 2ª Partes, 1879; Systema de Orthographia Brazileira, 1880) se identificou simplesmente como "Um brasileiro". Também publicou, em 1881, a Carta de Nomes para se Ë sinar ë pôco të po a ler e a escrever figurãdo a pronü sia do Brazìl dedicada a os méstres e paes brazilèiros), e, em 1882, alguns artigos vindos a lume na Revista Brazileira.

Se as ideias ortográficas durante o período oitocentista, em Portugal, assumiram o carácter de disputa entre os partidários de um sistema etimológico, mais ou menos moldado pelo uso - a chamada "ortografia usual" - , e os arautos de um sistema sónico, representados sobretudo por Barbosa Leão, pela Comissão do Porto e por Corte-Real, já no Brasil a questão ortográfica, embora assente na necessidade de fixar e simplificar o sistema tal como em Portugal, adquire no entanto um cariz nacionalista, justificado quer pelas divergências entre as pronúncias brasileira e portuguesa, quer pela reivindicação de uma autonomia da "língua brasileira". A tentativa de criação de um sistema gráfico brasileiro que reflectisse as particularidades distintivas da língua portuguesa falada na antiga colónia insere-se na procura da identidade nacional e cultural do país, independente desde 1822. Com efeito, José Jorge Paranhos da Silva visava legitimar teoricamente e instituir na prática um sistema gráfico brasileiro, de tendência fonográfica, distinto de todos quantos haviam sido propostos em Portugal.

Sem entrarmos na análise pormenorizada da sua descrição da pronúncia brasileira, importa notar, todavia, os aspectos que devem traçar, no entender deste reformador, a fronteira entre os sistemas sónicos portugueses e um sistema fonográfico brasileiro. No seu estudo sobre O Idioma Hodierno de Portugal comparado com o do Brasil, ainda escrito no "sistema usual", Paranhos da Silva faz uma análise comparativa da pronúncias portuguesa e brasileira (1ª parte), seguida de uma comparação lexical que pretendia pôr de manifesto as coincidências e as divergências vocabulares entre a fala portuguesa e a fala brasileira. Assim, no respeitante às diferenças de pronúncia,9 determinantes só por si de um sistema brasileiro, segundo o autor são de destacar tanto aspectos relativos ao vocalismo como ao consonantismo: em Portugal, as vogais átonas pretónicas são quase inarticuladas ("s’lada", "r’zão", "j’nella"; "m’nistro", "exc’z’tice", "inc’lino"; "c’lonia", "t’stões", "p’suir", 1879, p.12)10, ao contrário do Brasil, onde as referidas vogais se articulam distintamente; em Portugal < e> e < o> átonos realizam-se como [ i] e [ u] ; junto de nasal, a tónica é fechada no Brasil, ao passo que em Portugal é aberta ("gênio-génio", "trêmulo-trémulo", "êmulo-émulo", p. 27); também em Portugal < e> realiza-se como [] , junto de palatal lateral e nasal ("vâjo", "pâjo", "d’zâjo", "juâlho", "cunsâlho", "xpâlho", "vânho", "lânha", "tânho", p. 27); ao invés do Brasil, em Portugal as grafias < -ãe> e < -em> correspondem a um só ditongo [ ãj] ("mãi"- mãe, p.27, "Blãi" - Belém, p.28); no Brasil, não se verifica a elevação das vogais átonas dos derivados, que mantêm o timbre ("gêlo-gêládo", "pêso-pêsádo", p.28); devido à fonética sintáctica, em Portugal verifica-se a crase entre a vogal final de um vocábulo e a do seguinte ("tod’ó dia", "cort’ó p’scoço", "and’ó hómem", p.33). Com respeito aos ditongos orais, salienta Paranhos da Silva a redução do ditongo [ aj] a uma só vogal aberta [ a] ("cáixa-caxa", "báixo-baxo", p.38) e refere a dissimilação vocálica de < ei> em [ j] no fala portuguesa ("lâite", "bâijo", p.39). Em conformidade com as ideias expostas na sua fundamentação e com a realização brasileira, este sistema adoptará grafias como as de "atemosféra", "adevogado", "menemonica", "indiguinar", p.5), nas quais os grupos consonânticos são desfeitos pelo acrescentamento de uma vogal.

Quanto ao consonantismo, o autor descreve o fenómeno de palatalização da sibilante em final de sílaba interior ou final11 ("mixterio", "livrox novox", p.20), que não se verifica no Brasil.12 Idêntica palatalização regista-se, ainda, na sibilante do grupo culto < -sc-> , reposto por via erudita ("paxcer", "naxcer", p.21), embora no Brasil perdure a pronúncia antiga,13 isto é, uma única sibilante. Na pronúncia portuguesa, Paranhos da Silva reconhece igualmente a realização fricatizada da oclusiva dental14 [ d ] . Por último, menciona a neutralização da oposição15 /b/-/v/, fenómeno dialectal do português europeu que não encontra no território brasileiro. Interessante é solução proposta para a representação do valor de < x> em palavras como sexo ("secso", p.23). O espírito reformador leva-o a adoptar a < j> como única grafia da palatal sonora e a proscrever totalmente < h> inicial ("umor", p.29). O mesmo princípio fonográfico de aproximação entre escrita e fala presidiu à representação dos grupos consonânticos, cuja grafia depende da realização oral ("decepção", "opção", p.5).

Também nos domínios lexical e morfo-sintáctico Paranhos da Silva indica toda uma série de aspectos que, repetindo uma expressão de Teófilo Braga (1870), afastam o "idioma brasileiro" ou "dialecto brazileiro" da língua portuguesa. Com respeito ao léxico, refere vocábulos comuns aos dois países, vocábulos com significação diferente em ambos, palavras apenas usadas em Portugal e palavras brasileiras de origem indígena. Relativamente à morfo-sintaxe, o autor salienta, entre outros aspectos, o emprego dos pronomes pessoais e possessivos, assim como o uso de certos verbos (estar, ter) e de algumas preposições. Afora estas particularidades, fundamenta a especificidade do "idioma brasileiro" em características diferentes do chamado estilo do português.

Deste modo, o Systema de Orthographia Brazileira (1880) proposto por Paranhos da Silva tinha em vista transcrever a fala brasileira, correspondendo, portanto, a um nacionalismo linguístico, já anteriormente traduzido na literatura de estro romântico, entre 1840 e 1880, pela inserção de "indigenismos" nas obras dos autores (José de Alencar, por ex.) que pretendiam criar uma expressão brasileira, diferenciadora da língua e literatura do antigo colonizador.16 Na sua reivindicação da autonomia linguística do Brasil, Paranhos da Silva chega ao ponto de entroncar a "língua brasileira" no castelhano17 e de refutar o enraizamento do "brasileiro" no português, assunto de que se ocupa longa e repetidamente, quando diz:

O brazileiro, porem, que é uma pequena moficasão do portuguez ãtigo e tão pôco dialéto dele em razão dos neologismos indijenas e africanos (...) é scientificamente falando, o mesmo dialeto castelhano empregado ãtigamente em Portugal. por consequencia, não se pode com sereiedade afirmar que em relasão a o castelhano, isto é, tomãdo se dialéto em sua acsepsão sientifica, seja o brazieleiro o mesmo dialéto que o galiziano moderno ou portuguez atual. (...) Alem disto, os portuguezes ilustrados reconhecem que o brazileiro não conforma cõ as regras da gramática de portugal, e dizem que o brazileiro não é «curréto» (Questões de Lingoística, 1882, p. 12,15).

Segundo Paranhos da Silva, só uma ortografia "phonographica não desnaturada é capaz de fixar e conservar os sons da bella lingoa do Brazil", mesmo que isso implique criar novos tipos de imprensa.

A avaliar não só pela doutrina e soluções propostas como também pelas referências aos reformadores e ortografistas portugueses, em particular a Barbosa Leão,18 este sistema integra-se no debate oitocentista sobre a "questão da ortografia portuguesa", com reflexos em ambos os lados do Atlântico, situação à qual se refere o autor brasileiro, ao encerrar as suas reflexões sobre o assunto:

sei què mü itos, porë , não pódë abãdonar a idéia de què a ortografia brazilèira deve não perder de vista «as tradisões e as istórias de Purtugál». só lhes declaro què në admiro a sua firmeza, në o discurso de quë na Academia de Lisboa falò 4 óras, para cõvë ser seos cõpatriótas da nesesidade de se respeitar a Etimolojia latina na escritura do portuguez. Porquè, coãto a firmeza, vejo maiór nos miguelistas ô Miglistas (partidarios de D. Miguel) de Portugál; e coãto a o discurso declarada-më te bazeado ë fiziolojia, ë anatomia, ë fizica, etc., afirmo què já vi côza superior a as carradas de razão do Etimológo «novo», do què dizë ter sido defë sor da ortografia fonética (p. 45).

Com respeito às fontes, Teófilo Braga 19(1876) é o autor português mais frequentemente citado. Ora é sabido que Teófilo era adepto do positivismo. No Brasil, esta corrente também produzirá frutos no plano ortográfico, como se observa na Orthografía Positiva (Rio de Janeiro, 1888)20, de Miguel Lemos.

A verdade, porém, é que este "sistema brasileiro" passou quase despercebido em Portugal.

2.3. Ortografia Positiva

Para além de Paranhos da Silva, a corrente fonetizante teve ainda outros partidários em terras brasileiras. Um deles foi o positivista Miguel Carlos Correia de Lemos (1854-?), que assinava como Miguel Lemos. Seguidor das ideias de Augusto Comte, desde 1875, veiculadas no Brasil pelo Apostolat Positiviste du Brésil, e secretário da Biblioteca Nacional do Rio, em 1884, na Ortografía Positiva Nota avulsa (Distribuissão gratuita, Rio de Janeiro,1888), propõe uma simplificação gráfica em sentido fonético, cujos princípios basilares e soluções foram apreciados e comentados por Gonçalves Viana, numa recensão crítica publicada na Revista Lusitana (vol. I). À Ortografia Pozitiva seguir-se-ão: Aviso sobre algumas modificações no nosso sistema ortografico (Rio de Janeiro, 1890) e Simplificações ortográficas, praticadas desde já por todos e uzadas em nossas publicações (Rio de Janeiro, 1893).

Miguel Lemos dá-nos conta dos seus mentores ideológicos em matéria metaortográfica no Boletim do Apostolado Positivista do Brasil (Rio de Janeiro, 1888). De facto, o positivista brasileiro atesta a sua filiação não só na doutrina comtiana como também na de Arsène Darmesteter, cuja posição anti-etimologista subscreve. Assim, seguindo aqueles mestres, propõe um sistema médio de ortografia, ou seja, uma ortografia pozitiva. À semelhança dos sistemas de Barbosa Leão e de outros reformadores portugueses, o sistema positivo de Lemos caracteriza-se pela primazia do princípio fonético: a cada som deve corresponder uma única unidade gráfica e vice-versa, ideal fonetizante que parece inviabilizar qualquer conciliação com o princípio histórico, isto é, a etimologia e a história da língua, ao contrário do que proclamavam Vasconcelos Abreu e Gonçalves Viana, nas Bases da Ortografia Portuguesa (1885), onde os dois filólogos portugueses defendem a unidade da língua literária, como condição necessária à não pluriferação de sistemas locais ou individuais e à congregação das variedades regionais em torno da mesma norma escrita.

Definida como uma "ortografia brasileira", porque baseada na pronúncia brasileira, a Ortografía Positiva visa corresponder a todas as variações, assumindo por isso carácter supra-regional. Quanto às soluções adoptadas pelo autor, são de destacar as seguintes: < i> para representar a vogal final de "cidadi"; a grafia < j> para a palatal sonora ("jeral") e a substituição de < ç> por < ss> , por ex. em "distribuissão".

3. Conclusão

As propostas oitocentistas de ortografia brasileira acima sumariamente descritas bem como o seu enquadramento na discussão da ideia da "reforma ortográfica" no espaço latino-americano traduzem até que ponto, no século passado, o problema da ortografia portuguesa se integrava plenamente num movimento inter e transnacional, não só na Europa como também na América do Sul, com especial ênfase para o Chile,21 país onde tiveram grande impacto as ideias reformistas de Andrés Bello, gramático e ortografista venezuelano-chileno, assim como as do alemão Rodolfo Lenz (1863-1940) e as do grupo dos "neógrafos". A corrente sónica portuguesa e a questão ortográfica, tanto em Portugal como Brasil, tiveram o seu epicentro no ano de 79, e inserem-se num movimento internacional, impulsionado pelos progressos dos estudos de fonética, ou da então chamada "fonologia". Estes movimentos reformadores transnacionais têm em comum a procura de racionalização e da economia dos sistemas gráficos, somadas a problemas educativos, que no caso português se prendiam sobretudo com o analfabetismo e, no caso brasileiro, com uma tentativa de autonomia linguística de carácter nacionalista. À luz de ideologias promotoras da consciência social e da igualdade de direitos dos cidadãos, o republicanismo, que em Portugal começa a organizar-se por volta de 1876, assume como causa própria a redução do número de analfabetos. Além fronteiras, as reformas ortográficas constituíram até uma bandeira da identidade cultural de nações modernas. Assim sucedeu no Brasil, país independente desde 1822, como se vê pelo Sistema de Ortografia Brazileira (1879/1880), proposto por Paranhos da Silva, e também no Chile, onde se verificaram diversas tentativas de reformar a ortografia castelhana em conformidade com a pronúncia chilena. Se é certo que nas três propostas brasileiras não encontrámos referências explícitas à polémica chilena, a verdade é que a questão da ortografia brasileira, apoiada nos mesmos princípios daquela, coloca o Brasil na corrente reformista em que os aspectos linguísticos são indissociáveis dos políticos e sociais.

Que estas notas sobre o estado da questão ortográfica no século passado sirvam para melhor compreendermos a remota origem de desacordos contemporâneos.


Notas

1. Carta sobre a orthographia portugueza dirigida ao sr. José Barbosa Leão, 1879.

2. Proposta de reforma ortografica (Angra do Heroismo, 1879), e Notiçia ortografiqa da qomição nomeada pela Aqademia Real das Çiencias de lisboa açerca da reforma ortografiqa que lhe foi çubmetida por uma qomição qongregada na çidade do Porto em 1878, 1879.

3. Projecto de ortografia portugueza reformada, Lisboa, 1879.

4. Cf. Abraham Esteve Serrano, Estudios de Teoría Ortográfica del Español, Universidad de Murcia, 1982, p. 109.

5. Cf. Lidia Contreras, Ortografía y Grafémica, Madrid, Visor Libros, 1994, p. 27-48.

6. Criado por Voltaire (Encyclopédie, t. XI), o termo designa uma nova maneira de escrever, diferente da tradicional, e passará depois a designar uma corrente de orientação fonetizante aplicada aos sistemas gráficos de várias línguas.

7. Cf. J. A. de Sousa, "Escriptura Repentina. Nova tentativa de revolução orthographica", O Instituto I (Coimbra, 1853) 384-385. O autor via no métido Castilho uma verdadeira "revolução neográfica".

8. Publicada em Vitória do Espírito Santo, a obra tinha sido revista e aprovada por José Ortiz e Luís Alves de Azambuja Suzano.

9. Com frequência recorre o brasileiro à descrição dos sons portugueses realizada Jerónimo Soares Barbosa (Grammatica Philosophica, 1822/1830).

10. Cf. p. 51: « (...) a lingoa de Portugal tem grupos de quatro, de cinco, de seis e sete consoantes ! Quem duvidar conte as de cr'star, as de 'str'm'cer, as de pr'scr'ver, e as de pr'scr'v'rá, e diga quaes serão mais valentes, si os orgãos vocaes que podem pronunciar tantas consoantes juntas, ou os tympanos de quem as ouve».

11. O autor descreve o fenómeno nos termos seguintes: «E então ?! São gostos. Para nós os Brazileiros, por exemplo, a cousa é muito differente: a continuação dos sons de x não faz ao nosso ouvido o effeito de uma cascata, mas de uma duzia de frigideiras. Oução: Achaxtex e tumaxtex extex cuxtumex lá por ond'andaxtex» (p.21).

12. A esse respeito, cf. p. 23: «sempre sibilante, ás vezes forte, ás vezes branda», mas sem ser chiante. Todavia, também localiza o fenómeno de palatalização em território brasileiro: « (...) o sõ d'caxcata du Caxtilhu e da Madáma Tachtu continuoù: o sõ de ch foi desterrado para o Brazil (...); e depois se refujiò no së tro de São Paulo».

13. Cf. p. 21: «Nós outros, porem, dizemos nacer, como João de Barros, nacimento, pacer; pois para nós o s tem no fim das syllabas o mesmo som do nosso ç, e só o nosso mao instincto de imitação nos faz escrever como os Portuguezes nascer, para mostrarmos que a nossa moderna palavra vem do latim nascor (sem embargo de que a antiga, a de João de Barros vinha do castelhano nacer)».

14. Cf. p. 22: «Tem o d ás vezes um som algum tanto differente nas duas maneiras de falar; mas essa differença tende a desapparecer. Em muitos logares de Portugal o d é pronunciado ás vezes quasi como o mais brando dos dous rh inglezes, o qual é um d pronunciado com a ponta da lingoa molle sobre os dentes superiores. Comparemos o d de mulhado, dito pelos nossos primos de Portugal, com the, artigo inglez, e vejamos si ha muita differença. (...) Lisboa, porem, parece ter já desterrado o d natural da Peninsula».

15. Cf. ibid.: «A troca do b pelo v é considerada no Brazil como caracteristica da fala dos Portuguezes, e excita o riso mesmos dos Primos que vivem entre nós. entretanto essa troca não me parece ridicula nem desagradavel. (...) Si ha cousa de ridiculo é que o numero menor de Portuguezes não deixe imprimir em Portugal o que pronuncia o numero maior. Não é porque não fazem a troca de b por v que para nós a pronuncia de Coimbra é soffrivel, posto que algum tanto dura».

16. Sobre a "questão da língua brasileira" no século XIX, vide: Nilce Sant'Anna Martins, História da Língua Portuguesa, S. Paulo, Editora Ática, 1988, vol. V, p. 8-33.

17. Do opúsculo Algü s Artigos què já forão e ôtros què ião ser publicados na Revista Brazilèira, Rio de Janeiro, Tip. de L. Winter, 1882, consta uma secção intitulada Questões de Lï goìstica (p. 9-24), na qual Paranhos da Silva tenta demonstrar a filiação do brasileiro no castelhano.

18. Cf. Questões lingoísticas, 1882, p. 37.

19. Natural de Ponta Delgada (Açores), Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1843-1924) era escritor e poeta. Esteve envolvido na chamada "Questão Coimbrã" e teve um papel destacado no campo político: foi presidente do Governo Provisório, em Outubro de 1910, logo após a implantação da República, para a qual ele também muito contribuíra, e chegou a ser chefe de Estado.

20. Sobre este sistema, vide: A. R. Gonçalves Viana, "Miguel Lemos - Ortografia Positiva, 1882, Revista Lusitana I 389-390.

21. Vide: Lidia Contreras, Ortografía y Grafémica, Madrid, Visor Libros, 1994, p. 15-85.

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